quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O REINO PERDIDO


Gil Gonçalves
Governar é muito fácil… basta fingir que existe ensino para ter um povo analfabeto e facilmente o submeter à escravidão.

Desempoeirava os arquivos na lisbonense Torre do Tombo quando encontrei um manuscrito surpreendente.
A corte do Rei D. João V de Portugal, que reinou de 1706 a 1750, vivia luxuária com as naus que chegavam e descarregavam ouro e diamantes brasileiros. Era o rei dos deuses. Tangou 120 milhões de cruzados no Convento de Mafra. O dízimo à igreja de Roma ultrapassou 200 milhões. O Aqueduto das Águas Livres?.. o povo pagou. Um rei que influencia reis actuais porque o copiam, suplantam-no. Insatisfeito, D. João V queria mais riquezas, o que prova que quanto mais se têm mais se quer, e ordenou os preparos de três embarcações com destino à Africa Ocidental, na deriva da rapina, no saque de mais ouro e diamantes.

Acabou-se a aparelhagem das naus que almiranteadas por D. Fuenteovejuna, desacostaram numa manhã sedativa. Usaram a prática de apenas os capitães conhecerem o destino da viagem. Chegaram às ilhas de Cabo Verde, fizeram a Volta ao Largo, depois ficaram à mercê dos bons ventos rumando para sul. Muito navegaram e bordejaram até ao encontro de uma grande tempestade que dir-se-ia os aguardava. As vagas não vagavam as naus que descombinadas perdiam o desejo, o ser de boa paz. Chuva e ventania intensificavam-se o que forçou as naus a largarem-se as mãos, e saírem da rota como países mal governados. Dias aziagos sucederam-se com esforços para não se afastarem, para continuarem como namorados, mas em vão, a nave capitã perdeu-lhes os vultos. O almirante do mar oceano Fuenteovejuna, não se surpreendeu quando se mareou que andava à deriva. Como os homens que fazem guerra, o mar também se cansa e amaina. Seguiu-se a dança do universo visível e um estafado marinheiro soltou algo parecido com um grito:
- Terra à vista!
- Louvado seja Deus Nosso Senhor! - Exclamou o capitão que acrescentou:
- Vamos consertar a devastação da tempestade, renovar os viveres e saber onde acostámos.

Exaustos, deitaram-se na areia fina do imaginário paraíso. A vegetação adensava-se e o sol rompia com a sua fornalha, o que levou Fuenteovejuna a profetizar:
- Chegámos ao país do sol!

Saboreava-se o amável convite da Natureza para bater sorna, mas o deleite não foi demorado porque das sombras da vegetação surgiram alguns seres humanos escuros, achocolatados. Um destaca-se, ergue a mão em sinal de cumprimento e Fuenteovejuna pergunta-lhe:
- Onde estamos, quem são?
- Watula! (já chegámos) saudaram os nativos na sua língua.
Fuenteovejuna, à James Cook na Austrália, sabiamente esclarece os seus homens:
- Meus senhores… parece que estamos no reino dos Watulas!
Viu a inutilidade da sua conversa porque os nativos não o entendiam. Esboçou-se, esforçou-se e marimbou-se. De repente surge uma jovem, uma natividade de extraordinária beleza que faz uma afirmação desconcertante:
- Eu entendo a tua prosa.

Fuenteovejuna olhou guloso para a jovem natividade, como alguém que não comia nada há muito tempo. Admirou-se, admirou-a, despiu-a mentalmente, aparentava vinte e cinco anos. Cor de chocolate claro, lembrava uma estátua de deusa perdida, à muito procurada pelo argonauta, uma lenda das maravilhosas ilhas encantadas que nenhum escultor ainda esculpira. Como um sonho nunca viajado, encontrado, nunca revelado. Os seios nus, erectos e mamilos de endoidecer qualquer hominídio, sugeriam que acabavam de aportar no paraíso perdido. A cobrir-lhe o sexo já publicitava, estampava a maravilhosa invenção da tanga. Fuenteovejuna esqueceu-se de Deus porque sentiu um arrepio de paixão terrena passar-lhe pelo centro do corpo. Rouquejou:
- O meu nome é Fuenteovejuna, como é que sabes a minha língua?
- Chamo-me Kufundisa, (fazer justiça) e a tua prosa aprendi nos computadores dos Dólares.
- Como se chama este reino e quem são os Dólares?
- Este reino, agora chama-se Ajimbila, (ficam perdidos) e os Dólares governam-nos, oprimem-nos... os Dólares chegaram aqui nalgumas naves especiais com pessoas brancas, a que o nosso povo estupidamente chama deuses e que conluiados com o rei absoluto, Ka Ubu (o eterno) nos zeraram as almas. Os nossos filhos precocemente sabem que a vitória da morte é certa. Não temos comida, não temos nada…somos zeros … para sobrevivermos bazámos para a selva. Todas as riquezas do nosso reino são para os Dólares, para Ka Ubu e a sua tribo.
- E vocês não se revoltam?
- Não dá, porque Ka Ubu e os Dólares têm muitos guardas, um exército poderoso e muitas armas sofisticadas. Quando nos apanham, e como somos da oposição, fazem tais feitiços que desaparecemos e os assassinos nunca são descobertos. Também extraem um líquido, a que chamam ouro negro, e é com ele que movem as máquinas dos Dólares, e da tribo de Ka Ubu. Também extraem muitos diamantes. Somos alguns milhões e morremos de fome… infindavelmente condenados às galés infortunadas. Os do Ka Ubu estão sempre em festas, e tem umas máquinas que se chamam rádios, e estendem-nos a tentação dos convites para as maratonas deles. Nesses dias bebemos muito e comida nicles. O nosso povo nesses dias usa o passatempo da bebedeira. Os únicos que lutam ao nosso lado, que nos apoiam muito são os Ecléticos. Eles têm uma rádio, mas é quase clandestina. Apoiam os nossos ideais de justiça e igualdade para todos. São uma verdadeira rádio de Kalunga. Espalham o embrião revolucionário da evangelização, a fraternidade, o amor, e noticiam… clamam, proferem sempre a verdade. As atrocidades dos Dólares e de Ka Ubu são oportunamente denunciadas, mas não deixam que o sinal da rádio vá muito longe. Quando os Ecléticos tentam longinquar o sinal e passar o direito à informação para todos, acusam-nos de malfeitoria, prendem-nos, ameaçam-nos, e se necessário libertam-nos para o universo paralelo da morte. Também contratam muitos estrangeiros aventureiros do piorio… malfeitores para nos perseguirem, nos explorarem… nem as nossas cubatas tradicionais a que eles chamam casebres escapam. Ka Ubu desinteressa-se das nossas vidas. Sobrevivemos mergulhando na prostituição. Ka Ubu aprecia muito a minha beleza, consegui-lhe fugir do harém mas a qualquer momento receio ser recapturada… ele quer que eu seja sua esposa, mas não aceito, não gosto dele… ninguém lhe gosta!

Fuenteovejuna, depois de ouvir tudo o que a bela Kufundisa disse, guardou um profundo silêncio, depois nublou-se e desanuviou:
- Minha beleza espectacular…
- Ah! Muito obrigada…
- … Kufundisa, apoiamos-te a restabelecer a paz, harmonia, justiça, para que não haja mais fome neste reino.
- E como o farás?
Fuenteovejuna não se sentia bem. A fofinha perturbava-lhe abria-lhe a alma. Claro que tinha outras intenções. Depois da aventura, se terminasse a contento comeria, sugaria todo o corpo, a beleza da Kufundisa. Decidiu-se:
- Vamos parlamentar com os Ecléticos, para que espalhem a sua rádio por todo o reino, isso é o mais importante… e quanto às armas que utilizam… tens alguma ideia?
- Sim! Falarei com o papá Akakakula, (dar o primeiro alimento a uma criança) era o nosso rei… continua muito bondoso, o nosso povo gosta muito dele. Foi destronado devido às ambições de Ka Ubu e dos seus amigos Dólares.
- Kufundisa, temos que espiar as instalações dos Dólares e Ka Ubu. Alguns homens vão contigo, depois idealizaremos um plano de ataque.
- Sim! Guardarei eterna gratidão por tudo o que fazes pela nossa liberdade, pelo nosso povo… mas por favor não te exponhas demasiado!
Olharam-se durante um profundo momento no universo dos seus olhos. Sentiram o feitiço inevitável que atrai as duas raças, as duas cores maravilhosas. O efeito do feitiço foi rápido, abraçaram-se, beijaram-se num ímpeto de quedas de Kalandula, avassalador de desejos perdidos, a aguardar o futuro prometido, ferido na angústia de tantas esperas.

Mais tarde, Kufundisa confundindo-se com a selva, reuniu-se com seu pai Akakakula, e o chefe dos Ecléticos, Mutongi (lutador). Akakakula apresentou a Fuenteovejuna algumas armas usadas pelos guardas de Ka Ubu e dos Dólares. Entretanto, os espiões enviados por Fuenteovejuna também se lhes reuniram e deram o ponto da situação.
Depois de Kufundisa conseguir instruir devidamente o manejo das armas, e de Mutongi prometer apoio na sua rádio com palavras em código aos resistentes, assentou-se que os alvos primordiais seriam o líquido, chamado de ouro negro. Sem este líquido, Ka Ubu e os Dólares chorariam amargurados.

Efectuaram-se vários ataques com sucesso. Ka Ubu e os Dólares preocuparam-se, porque viam as imensas riquezas fugir-lhes como areia ao vento. Ka Ubu convocou de imediato um dos muitos vice-reis e demandou-lhe:
- Não sabes quem está por detrás disto?
- Não, meu rei, não sei!
- Que morbidez…
Ka Ubu tinha que demonstrar a sua zanga, insatisfação, e o melhor para um rei é ver a cólera no seu rosto, gritar, e gritou:
- …seu mórbido, só pode ser essa maldita da Kufundisa, e do seu pai, esse oposicionista Akakakula.
- Sem dúvidas meu rei! O Mutongi dos Ecléticos está a passar uma mensagem na rádio dele da Kufundisa… ela diz que há muita corrupção no reino, e que vai tomar o poder com a ajuda de estrangeiros.
- Estrangeiros!? Quem, os Dólares!?
- Não meu rei, não são Dólares, são outros câmbios.
- Outros!?.. Quem!?.. Confisca-me a Kufundisa e o maldito pai dela. Vai-te e torna-te com ela… maldita azarada!

Com o auxílio dos Dólares facilitou-se imenso o chefe dos guardas de Ka Ubu capturar a fofinha, tenrinha Kufundisa. Já na presença da tirania, ressoa-se o fadário:
- Já nada me alumia… por causa de vocês donzelas caiem reinos, impérios… agora no meu reino nasceu uma revolucionária. Tu e o teu Toussaint l’Ouverture! Dar-te-ei uma bolinação que jamais esquecerás.
- Ai é! E que bolinação é essa?
- Kufundisa, não me omitas, sabes que te desejo, que tenho todas as mulheres que quero. És a eleita, a privilegiada, a princesa do meu harém! Neste reino tudo e todas as mulheres me pertencem, e tu não és excepção!
- Não!!! Como disse um antepassado: até que as leoas tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão glorificando o caçador. Somos corpos à espera no teu matadouro!
- Guardas, tirem-me daqui este tsé-tsé! Prisão com ela! Que o chicote a acaricie!

Na prisão, as encantadoras costas de Kufundisa ardem com o fogo das chicotadas. O sangue da injustiça escorre-lhe porque sempre existirão muitos oceanos injustos e quase nenhuns riachos justos. Mas Kufundisa era muito sacana porque nem lamento, gemido, pedido de misericórdia osculou.
Entretanto, Fuenteovejuna e os seus amigos tomam conhecimento da prisão de Kufundisa. A revolta alastra-se, alcança o auge. Os Ecléticos com a ajuda dos populares estendiam o sinal da rádio a todo o reino, e denunciavam que Ka Ubu e os seus amigos Dólares se aprestavam à rendição. A situação desfavorecia o chefe dos Dólares que tentou negociar com os revoltosos, mas em vão. Ka Ubu, sentindo-se só raspa-se para lugar de incertezas, para o exílio habitual de um reino amigo. Um grupo de pressão chefiado por Fuenteovejuna assola a prisão e liberta Kufundisa. Os dois agora amantes aproveitam-se da situação, saltam-se, abraçam-se, beijam-se interminavelmente. Kufundisa está de rastos.
- Meu amor conseguiu! Oh! Como te amo!
- Também eu… sem a tua coragem nada disto seria possível!

Repôs-se Akakakula no trono. Mutongi rei dos Ecléticos viu a sua rádio definitivamente entronizada. Cânticos, louvores e batucadas a Kalunga foram proclamados, entoados, ritualizados. Uma época de trevas terminara, e uma informação para os sem voz recomeçara. A educação, o progresso do reino democratizaram-se. Akakakula proclamou o novo reino com o nome Azériua. (são felizes).

Fuenteovejuna foi-se, era um aventureiro, deixou Kufundisa com um filho. Foi para as Américas rastreando Francisco Pizarro, Fernando Cortês, e o elixir da longa vida de Ponce de León… onde houver eldorados, misteriosas cidades do ouro, lá estarão e nunca de lá sairão.
Não tardou que aportassem a Azériua as naus com os missionários da evangelização, da espada da delapidação. Aventureiros e pistoleiros sucediam-se na busca incansável da pergunta: «onde está o ouro?» e os nativos respondiam: «aqui não, mas lá muito, muito longe tem» a África Negra é, será o destino dos eternos aventureiros.

Ainda hoje na densidade das selvas do Golfo da Guiné, alguns mais-velhos quentes das fogueiras nas noites frias, contam às crianças a lenda do povo de Azériua.
Civilizar é destruir com o petróleo das minorias as maiorias. Só nos traz tristezas, misérias, fomes.
Gil Gonçalves

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