domingo, 2 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (6)


ANTÓNIO SETAS


A fundadora da “seita”, “Temba Andumba”, era uma filha de Ndonje. Depois de se ter tornado uma corajosa rainha guerreira, e ter conquistado muitas terras, deixou-se embriagar pelo sucesso militar e introduziu leis e rituais (yijila, sing. kijila) destinados a preservar o seu estatuto como o mais temido e o mais respeitado governante de Angola. Primeiro, mandou buscar a sua própria filha ainda bebé, pegou na criança e lançou-a num grande almofariz, usado normalmente para reduzir os cereais a farinha. Em seguida, “Temba Andumba” agarrou num grande pilão e, sem misericórdia, reduziu o bebé a uma massa informe de carne esmagada e sangue. Adicionou àqueles restos humanos certas raízes, ervas e pós e ferveu toda a mistura para obter um unguento a que chamou” maji a samba”. Untando com o maji a samba o seu próprio corpo e o dos seus mais próximos apaniguados ela iniciou uma nova campanha de terror e conquista, devastando todas as terras ao seu alcance. E, para celebrar a vitória ordenou aos seus seguidores que pegassem nos seus próprios filhos, os cortassem em pedaços , e comessem o que daí restava como sinal de devoção às leis, yijila do reino. A páginas tantas “Temba Andumba” apaixonou-se por um certo Kulembe, cuja posição social lhe era inferior, mas que a igualava em bravura e crueldade. Por ambição, Kulembe desejava reivindicar para si próprio o prestígio da rainha e resolveu simplesmente matá-la para se apropriar do seu reino. Assim, durante muitos anos, enquanto “Temba Andumba” dilatava o seu reino, ele camuflou as suas demoníacas intenções, acabou por ganhar a confiança da rainha por meio de lisonja e fingida afeição e, por fim, casou-se com ela. Não muito tempo depois do casamento, convidou a esposa para um jantar de cerimónia, tradicional entre o seu povo, e assassinou-a, deitando-lhe veneno da bebida. Kulembe conseguiu esconder ao seu povo a sua cumplicidade no assassinato da rainha e induziu-o a aceitá-lo como legítimo sucessor e governante dos adeptos das yijila. A fim de consolidar o seu prestígio e a sua autoridade mandou matar um número indeterminado de pessoas em memória da rainha “Temba Andumba”, e deu de seguida início a uma terrível campanha militar em colaboração com os seus mais bravos generais, chamados “Calanda, Caete, Cassa, Cabuco, Caoimba e muitos outros (Cavazzi)”, e em conjunto, em pouco tempo se tornaram senhores de uma área ainda maior do que a conquistada pela famosa “Temba Andumba”.


Os aspectos significativos desta narração são as afirmações de que certos títulos de leste se juntaram ao kulembe para formar uma nova e muito poderosa força militar, o kilombo.

1) A primeira mulher do chefe do kilombo detém uma posição conhecida mais precisamente por tembanza, mas personificada nesta tradição por “Temba Amdumba”. Títulos com a mesma raiz de tembanza aparecem para sudeste, através toda a região dos Cokwe muitas vezes associados a rituais idênticos ao maji a samba

(os maridos de certas irmãs de chefes Cokwe recebiam o título de sambanza, evidentemente de mesma raiz que tembanza. A sobrinha mais velha do rei de um grupo de povos actualmente a viver no norte do Botswana, junto do rio Okavango(os Mbukuxu), tinha o nome de mambanje, e desempenhava uma função crucial na manutenção do bem-estar do reino, já que coabitava, para fins rituais, com o seu tio, o rei, e partilhava com ele os segredos da produção da chuva. E, como mais uma referência à maji a samba, alguns dos bebés nascidos das uniões incestuosas do rei com a mambanje eram assassinados e sacrificados segundo esse ritual. Os eleitores Mbukuxu escolhiam os sucessores dos seus reis entre as crianças sobreviventes deste grupo)
1) A impressionante semelhança entre as cerimónias de fazer chuva dos Mbukuxu e a morte ritual de crianças necessária à preparação do maji a samba, reforça a identificação da tembanza do kilombo com o título mambanje dos Mbukuxu.
2) O bando do kinguri adoptou provavelmente os rituais do maji a samba, assim como o título central da tembanza, quando já se encontravam entre os Cokwe e abandonaram os seus rituais linhageiros. O maji a samba conferia uma invulnerabilidade mágica de substituição à que decorria outrora dos rituais próprios das linhagens agora perdidas.
3) No sentido metafórico, a cerimónia ritual de “matar os filhos”(assim como a preparação do maji a samba) simbolizava o poder absoluto do governante sobre os seu povo, já que os “filhos” da narrativa representam os súbditos de um chefe político( tal como a imagem do kinguri, assassinando escravos de cada vez que se sentava ou levantava), em contraste com os seus parentes, que são sempre descritos como “sobrinhos e sobrinhas”.
4) No sentido mais literal, porém, a matança dos filhos, quando praticada por toda uma população, torna-se um meio de abolir as linhagens (ver o kinguri com a sua proibição de fazer filhos, com o mesmo resultado estrutural, a abolição das linhagens).
5) O uso do maji a samba pode ter começado como um ritual praticado apenas pelos líderes do grupo, como mais tarde entre os Mbukuxu, mas o seu significado estrutural mudou completamente quando se estendeu do rei (simbolizado na narrativa por “Temba Andumba”) para todos os súbditos do rei, ilustrando o modo como da extensão de uma noção antiga se podia produzir uma inovação política relevante.
6) Tal como no modelo geral das genealogias perpétuas dos Mbundu, o “casamento” entre um homem e uma mulher (a qual, habitualmente significa um grupo de linhagens, mas neste caso significa um bando sem linhagens) é representação de subjugação de um povo a um título político. Neste caso o casamento com Kulembe representa a união dos aderentes do culto maji a samba com o kilombo, a sociedade iniciática guerreira do kulembe .

Provas linguísticas revelam um pouco acerca da natureza do antigo kilombo, embora pese a falta de uma informação clara sobre as instituições políticas e sociais do planalto de Benguela no tempo do Estado do kulembe. A prova mais directa vem de um povo chamado Mundombe, de língua Umbundu, próximo de Benguela, que ainda no séc. XIX chamava kilombo ao seu campo de circuncisão. A palavra ocilombo, no Umbundu padrão moderno, refere-se ao fluxo de sangue de um pénis recém-circuncidado; um termo aparentado, ulombo, designa um unguento preparado a partir do sangue e dos prepúcios dos iniciados dos campos de circuncisão. O radical, lombo, (a não confundir com lumbo, que designa uma “paliçada”, “muro”) que constitui a base destas palavras, identifica o termo kilombo como exclusivamente Umbundu, já que contrasta com a palavra Mbundu e Cokwe para as cerimónias da circuncisão, que é mukanda.
A palavra kilombo, portanto, indicava como origem da associação guerreira do kulembe um campo de circuncisão dos Ovimbundu.

Imagem: http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/pepetela/tchokwes.html

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