terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (12)


ANTÓNIO SETAS

Manuel Cerveira Pereira, governador entre 1615 e 1617, encorajava os Mbangala a destruir tudo o que de Tumundongo lhes aparecesse pela frente, o que levou à sua substituição dois anos após ter assumido o seu alto cargo por utilização não criteriosa dos Mbangala. O governador seguinte, Luís Mendes de Vasconcelos, (1617-1621) foi o primeiro a confirmar o estado de degradação deixado por Manuel Cerveira, tanto do ponto de vista dos Tumundongo como do ponto de vista da Coroa. Vasconcelos assinalava, aparentemente com base nas informações dadas por comerciantes daquelas zonas envolvidos no comércio ilegal, que muitos outros escravos não chegavam a Luanda, ou a outro qualquer sítio da costa, simplesmente porque os Mbangala os comiam para satisfazer o seu famigerado apetite por carne humana. De facto, estes comerciantes exageravam consideravelmente a quantidade de desfalques ocorridos por esse motivo, a fim de justificar o desaparecimento de um grande número de escravos, na verdade contrabandeados através de outros portos. Com uma base um tanto mais sólida, Vasconcelos relatava, na sua avaliação sobre o estado da “conquista” que os exércitos aliados de Portugueses e Imbangala tinham destruído completamente muitos sobas, ou titulares hereditários Tumundongo.
Alguns deles tinham perdido tanta da sua gente que não podiam satisfazer as exigências da coroa no que concerne a quota que era exigida no fornecimento de escravos. Contudo, sublinhava que ele próprio pouco ou nada podia fazer, pois sofria a oposição unânime dos traficantes locais, que argumentavam que a colónia fracassaria sem o apoio dos guerreiros Imbangala.
Ademais, o rei espanhol Filipe II, que tomara conta do controlo das possessões ultramarinas portuguesas durante o período de unificação das duas Coroas na Europa (1580-1640), enviou por essa altura a Luanda um emissário, Rebello de Aragão, para avaliar a posição das tropas portuguesas em Angola. O seu relatório de 1618 reflectia a inicial hostilidade de Vasconcelos para com os Mbangala e os comerciantes que deles dependiam para o abastecimento de exportações ilegais de escravos. Explicou que os Imbangala tinham servido bem os Portugueses de início, tinham-se mostrado guerreiros temíveis, ao ponto dos sobas locais se terem tornado dóceis como cordeiros, por puro medo, mas com o passar do tempo tinham-se tornado arrogantes e desviavam quando lhes apetecia escravos que deviam ir para a alfândega real, em Luanda. A responsabilidade de tais actos incumbia em larga medida aos Portugueses, uma vez que fechavam os olhos ao tráfico ilegal e serviam-se dos Mbangala para cometer toda a espécie de barbaridades. Por outro lado, sempre que viessem a faltar peças, os capitães dos Presídios enviavam gente para flagelar e raptar membros das aglomerações locais, mesmo sem a ajuda dos Imbangala. Enfim, os interesses de Portugueses e Mbangala pelos cativos adquiridos nessas razias eram perfeitamente complementares: os Imbangala preferiam guardar os rapazes mais novos como recrutas para o kilombo, ao passo que os Europeus compravam de preferência homens e mulheres adultos, de que os Mbangala não necessitavam. Os Mbangala tornaram-se assim a ambivalente pedra basilar do duplo sistema comercial que atingiu a sua fase de maturidade na primeira metade do séc. XVII: o legal, com a alfândega de Luanda, e o ilícito, feito com os contrabandistas que desviavam as “peça” sob pretexto de que elas desapareciam porque os Imbangala as tinham sacrificado aos seus rituais de antropofagia.
Vasconcelos, aparentemente, tentou eliminar a influência dos traficantes ilegais e trazer de novo os Imbangala para o controlo governamental, mas fracassou. Tudo o que conseguiu foi dispersar o principal kilombo e fazer fugir o kulaxingo para longe, no interior.

Os Mbangala do kulaxingo em Angola

O principal titular de cada bando Mbangala começou desde os primórdios do séc. XVII a estabelecer-se a norte do rio Kwanza em substituição dos dignitários Tumundongo que até essa altura tinham exercido a autoridade nesse território em nome do ngola a kilwanji, criando um novo Estado baseado no recrutamento obrigatório dos varões locais para a associação do kilombo. A iniciação desses homens no kilombo privava a parte mais produtiva da população local da sua anterior pertença às linhagens Tumundongo, ao mesmo tempo que a sujeitava à autoridade directa do rei Mbangala e dos vunga por ele nomeados. Do ponto de vista militar, o Estado Mbangala do kulaxindo eram constituídos por acampamentos de mercenários estabelecidos nas franjas da Angola portuguesa, que em tempos normais capturavam agricultores locais para os vender como escravos, e em tempos de guerra prontamente se juntavam às forças portuguesas para combater. Infelizmente, do ponto de vista dos governadores de Luanda, eles também colaboravam assiduamente com os traficantes ilegais.
Apesar de tradições um tanto contraditórias, as provas circunstanciais apontam para o médio Lucala como o local do acampamento permanente dos Mbangala do kulaxingo, já que um região ali localizada chamada Lukamba (perto de Ambaca), se tornou um importants e precoce centro do tráfico de escravos. O acordo passado entre Portugueses e Mbangalas também levava a que estes últimos estivessem perto de Ambaca. Os governadores da década de 1610-1620 concentraram os seus esforços na penetração no coração do Estado do ngola a kiluange. Começaram por reforçar a sua posição no baixo Lucala, construindo um novo Presídio num local chamado Hango, que serviria de base para futuras acções ofensivas com a ajuda, certamente, dos Mbangala acampados por ali perto, servindo de tampão entre o Ndongo e as fracas forças portuguesas a jusante do Lucala. Em 1617, os Portugueses avançaram o Presídio de Hango para leste, num novo local situado perto de Ambaca, perto portanto de Lukamba, base dos Mbangala, já que os Portugueses desejavam um posto fortificado tão próximo quanto possível dos seus aliados africanos. Estes, entretanto, produziam mais escravos do que os canais oficiais podiam absorver, o que levava a que o tráfico ilegal prosperasse tento ou mais do que o do governo de Luanda. Alguns governadores encorajavam essas aventuras ilegais e tiravam certamente algum proveito delas.
Manuel Cerveira Pereira, governador entre 1615 e 1617, encorajava os Mbangala a destruir tudo o que de Tumundongo lhes aparecesse pela frente, o que levou à sua substituição dois anos após ter assumido o seu alto cargo por utilização não criteriosa dos Mbangala. O governador seguinte, Luís Mendes de Vasconcelos, (1617-1621) foi o primeiro a confirmar o estado de degradação deixado por Manuel Cerveira, tanto do ponto de vista dos Tumundongo, como do ponto de vista da Coroa. Vasconcelos assinalava, aparentemente com base nas informações dadas por comerciantes daquelas zonas envolvidos no comércio ilegal, que muitos outros escravos não chegavam a Luanda, ou a outro qualquer sítio da costa, simplesmente porque os Mbangala os comiam para satisfazer o seu famigerado apetite por carne humana. De facto, estes comerciantes exageravam consideravelmente a quantidade de desfalques ocorridos por esse motivo, a fim de justificar o desaparecimento de um grande número de escravos, na verdade contrabandeados através de outros portos. Com uma base um tanto mais sólida, Vasconcelos relatava, na sua avaliação sobre o estado da “conquiste” que os exércitos aliados de Portugueses e Mbangala tinham destruído completamente muitos sobas, ou titulares hereditários Tumundongo. Alguns deles tinham perdido tanta da sua gente que não podiam satisfazer as exigências da coroa no que concerne à quota que era exigida no fornecimento de escravos. Contudo, sublinhava que ele próprio pouco ou nada podia fazer, pois sofria a oposição unânime dos traficantes locais, que argumentavam que a colónia fracassaria sem o apoio dos guerreiros Mbangala.

O “olho de Madrid”
O rei espanhol Filipe II, que tomara conta do controlo das possessões ultramarinas portuguesas durante o período de unificação das duas Coroas na Europa(1580-1640), enviou por essa altura a Luanda um emissário, Rebello de Aragão, para avaliar a posição das tropas portuguesas em Angola. O seu relatório de 1618 reflectia a inicial hostilidade de Vasconcelos para com os Mbangala e os comerciantes que deles dependiam para o abastecimento de exportações ilegais de escravos. Explicou que os Imbangala tinham servido bem os Portugueses de início, tinham-se mostrado guerreiros temíveis, ao ponto dos sobas locais se terem tornado dóceis como cordeiros, por puro medo, mas com o passar do tempo tinham-se tornado arrogantes e desviavam quando lhes apetecia escravos que deviam ir para a alfândega real, em Luanda. A responsabilidade de tais actos incumbia em larga medida aos Portugueses, uma vez que fechavam os olhos ao tráfico ilegal e serviam-se dos Mbangala para cometer toda a espécie de barbaridades. Por outro lado, sempre que viessem a faltar peças, os capitães dos Presídios enviavam gente para flagelar e raptar membros as aglomerações locais, mesmo sem a ajuda dos Imbangala. Enfim, os interesses de Portugueses e Mbangalas pelos cativos adquiridos nessas razias eram perfeitamente complementares: os Imbangala preferiam guardar os rapazes mais novos como recrutas para o kilombo, ao passo que os Europeus compravam de preferência homens e mulheres adultos, de que os Mbangala não necessitavam. Os Mbangala tornaram-se assim a ambivalente pedra basilar do duplo sistema comercial que atingiu a sua fase de maturidade na primeira metade do séc. XVII: o legal, com a alfândega de Luanda, e o ilícito, feito com os contrabandistas que desviavam as “peça” sob pretexto de que elas desapareciam porque os Mbangala as tinham comido.

Imagem: http://pt.encydia.com/es/Reino_do_Congo

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