terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (18)


ANTÓNIO SETAS

Mesmo assim, Ngola a Mbande não estava em situação de resistir à onda de protestos vinda de todos os azimutes do seu reino. O povo não podia suportar mais humilhações, a reputação de sua irmã Nzinga andava pelas ruas da amargura, era urgente reagir pois tais pressões populares são sempre aproveitadas por algum Maquiavel ávido de poder, e a continuar nessa senda de desfeitas e vexames o seu trono estava em perigo de cair. Portanto, decidiu sem dar conta à irmã dos seus projectos, romper o pacto com os portugueses e atacá-los. A ideia, por necessária que tivesse sido, não surtiu nenhum efeito positivo, muito pelo contrário, precipitou Ngola a Mbande numa descida vertiginosa que o levou de titular do poder político... à morte.
Depois de sucessivos desaires, derrotas militares e fugas, pontuadas por uma ocupação forçada da ilha de Danji, no rio Kwanza, “pouco mais comprida do que uma milha, tão larga quanto dois tiros de mosquete e seis jornadas distante de Cabasso”(Cadornega), o rei da Matamba viu-se sitiado pelas forças lusas. Os seus homens começaram a abandoná-lo e Nzinga, segundo consta na tradição, teria aproveitado a desastrosa situação em que ele se encontrava, atacado por intrusos, abandonado e apontado com o dedo de todos os desastres sofridos pelo reino, para envenená-lo, e pôr assim violentamente um termo à sua vida. E de nada serviu ela protestar, e, com fingida pena, procurar culpar outros do seu próprio fratricídio. Para a história ficará, ad eternum, a probabilidade de ter sido ela a autora desse acto, que, crime ou não, lhe abriu em grande as portas do poder absoluto do reino do Ndongo.

A exótica coerência de Nzinga a Mbande
Depois do baptismo de Nzinga a Mbande, havendo por parte do governador Corrêa de Souza alguma relutância em combater essa mulher, que, para todos os efeitos era cristã, e não obstante ele ter prometido cumprir a sua palavra, as pressões de Lisboa para se aumentar o mercado de escravos para o Brasil eram tão fortes que o governador não se sentiu apto a agir segundo a sua consciência.
Mas, em Agosto de 1623 muda mais uma vez o governador, tendo assumido esse cargo o bispo Frei Simão Mascarenhas (João Correia de Souza, de 12 de Outubro de 1621 a Maio de1623, Pedro de Souza Coelho, de 2 de Maio de 1623 a Agosto do mesmo ano, e D. Fr. Simão Mascarenhas, de 10 de Agosto 1623 a 1624) , o que incitou a fresquíssima cidadã lusa dona Anna de Souza, aliás Nzinga a Mbande a insistir junto desse dignitário para que Portugal cumpra as suas promessas e devolva os homens do seu reino que tinham sido levados por traficantes de escravos. Ora, o tráfico de escravos era um grande negócio na altura e Portugal não estava interessado em abandonar essa fonte de rendimento. A Coroa portuguesa fez arrastar as negociações, fez que fazia e deixou de fazer, até que a certa altura, convencido de que com essa “Dona Jinga” não havia margem para dar confiança, decidiu aplicar a divisa, “para grandes males grandes remédios”, e, em 1625, o então governador Fernão de Souza (de 22 de Junho 1624 a 1630) decidiu acabar com a supremacia crescente de Anna de Sousa. Para isso, mandou pela força das armas colocar no trono do reino do Ndongo (sediado na região das Pedras de Mpungo Andongo) um parente dela, Ari Kilwanji,, que de facto não passava de um rei-fantoche, pronto a fazer o que os portugueses lhe ordenassem. O homem deixou-se baptizar, adoptou o nome cristão de Filipe, nome do rei de Espanha que então governava o reino lusitano, e comprometeu-se a prestar vassalagem ao colonizador, fornecendo 100 escravos por ano à Fazenda Real.. Bento Banha Cardoso, capitão- mor do governador, foi encarregado de executar esta missão. Reinava então o espanhol Filipe III.
Com o evoluir dos acontecimentos claramente hostis à sua pessoa, Anna de Souza acabou por decidir “mudar de casaca e vestir a dela, obedecendo ao que a sua natureza lhe pedia. Renegou o baptismo e assumiu-se como Rainha Jinga., o que não incomodou sobremaneira os Portugueses, Estes, arvorando um “não-te-rales” arrogante, entenderam que seria fácil domesticar esta mulher, considerada como uma espécie de fenómeno folclórico profusamente exótico. Dizer que para ser respeitada se vestia de homem, com as habituais peles de animais, usava machado à cintura e manejava sem dificuldade o arco e a flecha, dá uma ideia da sua entrega ao exercício do poder, embora esse porte catalogado como pueril pelos Portugueses. Além disso, o que já não é pouco, ela exigia ser considerada rei e não rainha, mantendo mesmo, à maneira de rei, o seu harém, composto, desculpem o pouco, de mais de cinquenta jovens que eram para todos os efeitos as “suas mulheres”, numa demonstração de vitalidade sexual que qualquer rei homem não poderia desdenhar. Algo que não lembraria ao Diabo, nem tão-pouco às mais belicosas feministas do século XX e XXI.
Sublinhe-se que, ao contrário de muitas outras histórias de rainhas africanas, Jinga não foi uma figura lendária. Existiu em carne e osso, há documentos mais que suficientes que o comprovam, entre os quais se contam cartas suas, o que para a época era raríssimo numa mulher africana. Nzinga a Mbande, de facto, tinha sido educada por frades italianos e aprendera a ler e escrever
.

“Jinga” era “tembanza” Mbangala
Para compreender inteiramente o relato dos acontecimentos que balizaram por um lado a subida de Nzinga a Mbande ao posto supremo do reino da Matamba com o título de ngola a kilwanji , por outro, a sua ferrenha vontade de se assumir como Mbangala, atentemos à sua ascendência. Como já vimos, o nome Nzinga a Mbande aponta para uma evidente origem Tumundongo, mas não assim tão linear quanto possa parecer. Do nome Nzinga constam antepassados que teriam interferido na tomada de poder de um ngola usurpador, da dinastia nzinga a ngola a kilombo kya kasenda, «que deixou uma lenda terrível de déspota, com «uma insaciável sede de sangue humana (Cavazzi, I)». De facto, durante as década 70, 80 e 90 do séc. XVI, o poder no Ndongo (Angola) parece ter passado para outros grupos de filiação que controlavam um outro título político.
«O intruso chamava-se “Jinga (Nzinga) a Ngola a Kilombo kya Kasenda, originário de linhagens Pende. (Miller, 1976)».
Depois da morte de Ngola a Mbande, que deverá ter ocorrido não em 1627 como pretende Cavazzi, mas em 1623, (segundo Cuvelier, Biographie Coloniale Belge, vol. II, pág. 471), sem perca de tempo Nzinga tentou apaziguar os portugueses, dando-lhes a crer que uma vez morto o rei rebelde, ela ali estava, consagrada no Santíssimo Sacramento do baptismo, para fazer as pazes.
Mas, apesar de ser verdade que este foi o seu discurso virado para o mar, destinado a acalmar os invasores lusos, para leste e nordeste, para os seus, os da Matamba e do Ndongo, a canção era outra.
Sabe-se que pouco tempo depois da sua subida ao trono começaram os preparativos de guerra, o retorno às tradições que consagravam o poder dos reis conquistadores de África, que nesse tempo recorriam a estratagemas cruéis, ritos sanguinários, sacrifícios, e violações ostensivas de leis, estritas sim, mas unicamente para os seus súbditos.
Esses ritos, evidentemente, ofuscaram e escandalizaram todos os observadores vindos da Europa nesse tempo, habituados a outras práticas de manutenção do poder político, por estas terem evoluído consideravelmente depois do apogeu de tribos muito antigas, como os Godos, os Visigodos, os Celta, Ostrogodos, Saxões e outros Francos, que mais de um milénio atrás tinham recorrido a rituais semelhantes aos dos africanos do século XVII, e só com a passagem dos séculos tinham sido substituídos por outros, menos sangrentos é certo, mas tanto ou mais cruéis que os dos africanos. Basta relembrar a sangrenta e torcionária Sagrada Inquisição dos católicos!
Neste clima de extrema violência, pontuado ao tempo pela morte de Ngola a Mbande, restava a Nzinga um último obstáculo a transpor para consolidar definitivamente o título de rainha do Ndongo, o seu sobrinho, filho do falecido Ngola, único e legítimo herdeiro do trono. De pequenino tinha sido entregue pelo pai aos cuidados de “Cassangola”, de facto Kasa ka Hango, um ex-título vunga, originário do Libolo, nessa altura nas mãos de um bando de Mbangala que, segundo a forma normal de aquisição de títulos políticos tomara esse nome. O Mbangala Kasa ka Hango aceitou a missão, educou e defendeu o filho do Ngola contra possíveis tentativas de vingança por parte de Nzinga, que nunca esquecera o assassínio do seu próprio filho pelas mãos do seu irmão.
Depois de vários esforços infrutíferos para se aproximar de Kasa, Nzinga a Mbande acabou por atingir esse objectivo utilizando a eterna arma feminina, a sedução. A tradição vai mesmo mais longe, assegurando que houve casamento entre os dois. Porém, na interpretação que se impõe para esse tipo de narrativas, e embora o casamento possa ter sido uma realidade, o importante é que mais uma vez nos encontramos perante a cessão de um título, decorrente desse casamento, neste caso o título “filho”, simbolizado pelo sobrinho de Nzinga, do qual ela se apossou e, a acreditar na legenda da tradição, matou e atirou o corpo morto para as águas do rio Kwanza.

Neste ponto da história, impõe-se uma abordagem mais aprofundada do papel desempenhado por Kasa ka Hango nesta tomada de poder por parte de Nzinga a Mbande.

Imagem: goodreads.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário