quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (19)


ANTÓNIO SETAS

O kaza ka hango, título vunga cedido às linhagens Túmundòngo nas proximidades do antigo centro do Libolo - e que, muito mais tarde se foi transformando com o passar do tempo em título linhageiro perpétuo -, pertencia a um povo que vivia algures do outro lado do rio, em frente do posto dos Portugueses de Cambambe. Os detentores deste título tinham adoptado o kilombo antes de 1620 e eram considerados pelos Portugueses como um dos mais poderosos grupos Mbangala da região. Aliaram-se aos Portugueses por um certo tempo, durante as campanhas vitoriosas com o kulaxingo e atravessaram o rio Kwanza para combater próximo de Massangano ao lado do exército Português comandado pelo capitão Luís Gomes Machado. Mas a dada altura, o rei Mbangala rebelou-se e foi estabelecer-se com o seu povo no Ndongo. Em 1621 veio uma expedição Portuguesa expulsá-lo do Ndongo, e o kaza fugiu, regressou à margem sul do Kwanza e utilizou a firme base de apoio que ali controlava para tirar a sua desforra, ao longo de toda a década de 1620.
Depois de ter ajudado o ngola a kilwanji, Mbande a Ngola, quando este se opôs à penetração Portuguesa no Ndongo, em seguida o kaza protegeu o “filho” de Ngola a Mbande, beneficiando da sua protecção para não ser capturado pelo Portugueses, mas depois de Nzinga ter substituído este último, o kaza, coerente consigo próprio, entregou o “filho”, que ele se comprometera a proteger, a quem fosse capaz de dignificar o seu nome e o apoiasse, o que não seria o caso do legítimo sucessor de Ngola a Mbande, ainda muito jovem. Na sequência dessa lógica, de resto, o kaza apenas permaneceu no Ndongo enquanto Nzinga pareceu capaz de suster os Portugueses, pois a vitória portuguesa de 1626 – quando ela foi expulsa da ilha Nsanji, como veremos mais adiante - obrigou-o mais uma vez a pôr-se em fuga para a outra margem do rio Kwanza. Dali começou a mandar recados, afirmando que desejava fazer as pazes com os Portugueses, mas a tradição diz que por volta dos anos 30 ele se deslocou para a Baixa de Cassanje e desempenhou um papel importante na formação do Estado de Kasanje.
Nesta cumplicidade com o kaza, a Nzinga tinha complementado a sua posição como ngola a kilwanji com um casamento simbólico com o chefe Mbangala, que lhe deu a posição de tembanza (primeira mulher) do chefe do kilombo. Esta função crucial entre os Mbangala, herdeira das funções atribuídas a “Temba Andumba” das tradições, implicava a preparação do maji a samba e permitiu a Nzinga assegurar a liderança do que restava da banda do kulaxingo, após a sua dispersão em 1619. E também explica a forte influência que ela teve sobre o kalandula e o kabuku ka ndonga durante as décadas de 1640 e 1650, como veremos mais adiante.
Esta aliança com os Mbangala também permitiu a Nzinga fazer quando necessário fosse as suas retiradas estratégicas sempre que a pressão dos Portugueses a expulsava dos seus redutos a norte do rio Kwanza. Várias vezes ela fez a sua retirada para estas áreas do Kwanza e além-Kwanza na década de 1620 (uma das vezes, em 1629, fê-lo para a área do kulaxingo na Baixa de Cassanje), e só se deslocou para norte, para o antigo reino da Matamba, apenas depois da sua estratégia de procurar refúgio entre os vários grupos de Mbangala se ter revelado incapaz de proteger a sua posição no Ndongo. (Miller, Potentado e Parentesco, 1975)
Voltando à tradição, esta dá-nos a conhecer que os esponsais entre Nzinga a Mbande e Kasa ka Hango tiveram lugar conforme o rito dos Mbangala, “com sacrifícios rituais e danças obscenas”, e que pouco tempo depois ela convidou o marido a deslocar-se à capital da Matamba, “onde lhe entregaria, com a sua pessoa, também aquele reino”. Kasa seguiu-a e levou com ele o príncipe, filho de Ngola a Mbande, o legítimo herdeiro do trono do Ndongo. No auge da festa, e perante grande parte dos seus súbditos, Nzinga rompeu em direcção ao príncipe, pegou nele e matou-o, depois correu para o rio e deitou o corpo às águas do Kwanza. Ao ver isto, e temendo pela sua própria vida, Kasa ka Hango fugiu, deixando Nzinga a Mbande dona e senhora da Matamba (“Rainha da Matamba e de Ndongo ou Angola”), posição que ela consolidou matando todos os seus parentes, poupando só as suas duas irmãs, Funji e Cambo. A partir dessa altura, sentindo-se segura no trono, Nzinga atirou-se contra os Portugueses com a ajuda dos Mbangala, de que ela era doravante a mais alta dignitária, a tembanza.

Nzinga a Mbande vai à guerra

Finda a campanha militar de 1617-18, num morticínio impiedoso dos povos Túmúndòngò, os Portugueses tinham definitivamente ocupado o território da margem direita (norte) do Kwanza, estendendo-se para leste até ao posto de Mbaka.
Foi nessa altura que o chefe Mbangala kulaxingo partiu para o interior, e os makota, não desejando reconhecer o título kinguri que eles tinham abolido e de que o fugitivo se apropriara, fundaram nas imediações do Ndongo nada menos que 30 grupos separados. De início esses makota manifestaram uma hostilidade aberta às forças oficiais portuguesas que tinham ajudado o kulaxingo, e um deles, detentor do título ndonga, tentou resistir às acometidas da campanha de 1617-18, conseguiu manter-se na região, mas foi derrotado mais tarde, em 1621, pelos Portugueses, que capturaram o chefe e destruíram completamente o seu exército., levando alguns membros restantes do bando a fugir para a Baixa de Kassanje, onde se juntaram aos Mbangala do kulaxingo no emergente Estado de Kasanje.
Contudo, um titular subordinado ao ndonga, Kabuko, assumiu o controlo sobre as outras partes do bando e decidiu juntar-se ao governador de Angola numa campanha em 1621-22 contra um súbdito do rei do Kongo, o mani Kasanze. Venceu. Continuou para norte, invadiu as províncias meridionais do reino, Mbamba e Mpemba, derrotou o exército de Mbamba e matou o duque de Mbamba e o marquês de Mpemba. Em 1623 foi de novo com os Portugueses até ao Kongo, mas desta vez para prestar mão forte ao rei, que lutava contra dois chefes ndembu que se tinham revoltado. Dessa colaboração nasceu uma parceria que se revelou mais duradoura que a que tinha ligado os Portugueses aos Mbangala em 1612 e de que Kabuku ka Ndonga beneficiou para estabelecer um reino semi-independente na fronteira sul da região dos ndembu, servindo de tampão aos portugueses contra estes últimos, situados a norte, para lá do rio Nzenza. Foram 200 anos de colaboração quase contínua, apenas violada, temporariamente, aquando da chegada dos Holandeses em 1641, em que o portador do título kabuku ka ndonga vacilou, deu mostras de se virar para os recém-chegados Holandeses, mas depressa se retraiu e em 1643 saíram da sua base de Wumba, a norte do Lucala, para fustigar os chefes ndembu que se tinham aliado aos Holandeses durante a ocupação de Luanda.
Quanto a Nzinga a Mbande, governante da Matamba, essa considerava-se a si própria mbangala. Mas o seu reino desenvolveu-se de forma muito atípica, uma vez que ela foi capaz de manter uma oposição às actividades portuguesas em Angola muito mais consistente do que a que lhes opunham os bandos de guerreiros Imbangala oriundos das terras de leste. Nzinga foi a única mbangala do norte que reivindicou uma autoridade política (certos títulos locais da Matamba) derivada do sistema autóctone detítulos dos Tumundongo por ser a única a possuir fontes locais de legitimidade. Embora elas fossem pouco seguras, permitiram-lhe comandar o seu próprio povo com maior margem de segurança do que os forâneos bandos de Imbangala titulares de exóticos títulos Lunda, que nunca ganharam a confiança das linhagens cujo domínio reivindicavam.
A economia do tráfico de escravos também lhe permitiu conservar uma certa autonomia em relação aos Portugueses até 1656, em virtude da rota passar pelo território dos ndembu e os Holandeses ocuparem Luanda na década de 1640, ao longo da qual ela deteve um monopólio virtual sobre o tráfico de escravos vindos do interior, em detrimento dos kalandula, que antes eram os principais fornecedores dos Portugueses
De entremeio com estas alianças e contra-alianças, e voltando atrás no tempo, logo a seguir à morte de Ngola a Mbande, o governador João Correia de Sousa tomara a decisão de satisfazer os desejos da nova rainha, Nzinga a Mbande, pedindo a Portugal a autorização de mudar o presídio de Mbaka para o Hako, a fim de sustentar um clima mais apaziguador, favorável, e de que maneira, ao tráfico de escravos. Mas tão-logo isso aconteceu, e com as demoras devidas às dificuldades de comunicação com a Coroa, já Nzinga se movimentava em campanha militar no fito de submeter todos os povos Tumundongo que se lhe deparassem no seu caminho para oeste, em direcção às posições ocupadas pelos Portugueses. Estes, alertados, mudaram de opinião e decidiram, em vez de sair de Mbaka, reforçar aí a sua posição, ao mesmo tempo que pensaram que uma boa maneira de reduzir a funesta influência da nova rainha seria destroná-la, e que, “portanto, os seus súbditos deixariam de estar sob a sua autoridade e não reconheceriam a sua autoridade”.
Em 22 de Junho de 1624, Fernão de Sousa sucedeu como governador ao bispo D. Simão de Mascarenhas, pouco tempo depois de Nzinga a Mbande ter sido proclamada rainha. Esta escreveu-lhe, pedindo o cumprimento da promessa do seu antecessor (essencialmente abandonar Mbaka), prometendo por sua parte que chamaria os jesuítas para o seu reino. O governador respondeu-lhe que seria preciso esperar, pois não podia abandonar Mbaka sem autorização do seu rei e pela mesma ocasião pediu-lhe que devolvesse os escravos que ela ainda tinha sob a sua alçada.

Imagem: rubelluspetrinus.com.sapo.pt

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