segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (22)


ANTÓNIO SETAS

ADENDA

Nzinga a Mbande

No exemplar único do primeiro jornal que saiu em Portugal, mais precisamente em Braga, no ano de 1627, Relação Universal, de Manuel Severim de Faria, versa um assunto referente à morte de “ELRey de Angola”:
“Por morte de ELRey de Angola sucedeo huma irmaã sua chamada D. Anna, que pretende que lhe mandem Padres da Companhia pera conversão daquelle Reyno, onde se espera que se abra huma grande porta pera a promulgação do Evangelho.(Fls. 212-213)”.
De facto a morte do denominado “ELRey de Angola”, titular da posição mbande a ngola, deu azo a que subisse ao trono do reino do Ndongo uma parente sua, que não tinha sido prevista para tal, mas que, em virtude de algumas manobras bem sucedidas conseguira situar-se no xadrez político do Ndongo de maneira a poder atingir esse objectivo. Quem seria?...

O nome

O nome Nzinga a Mbande aponta para uma inequívoca ascendência Tumundongo, mas não assim tão linear quanto possa parecer. Do seu nome Nzinga constam antepassados que teriam interferido na tomada de poder de um ngola usurpador, da dinastia de nzinga ngola a kilombo kya kasende, «que deixou uma lenda terrível de déspota, com «uma insaciável sede de sangue humana (Cavazzi, I)».
De facto, durante as décadas 70, 80 e 90 do séc. XVI, o poder no Ndongo (Angola) parece ter passado para outros grupos de filiação que controlavam um outro título político.
«O intruso chamava-se “Jinga (Nzinga) a Ngola a Kilombo kya Kasende, originário de linhagens Pende (Miller, 1976)».

Da nascença às origens da realeza
Morreu o rei (talvez em princípios de 1617) e sucedeu-lhe de forma violenta o seu filho, Ngola a Mbande, que, sem reflectir, quis fazer guerra aos invasores. Levado pelo seu instinto de conquistador, invadiu os terrenos sob controlo dos Portugueses e pela mesma ocasião decidiu desembaraçar-se de todos os que lhe poderiam cobiçar o trono. Para esse efeito matou o seu irmão, ainda criança, mas que era o único herdeiro legítimo do reino por ser o único que não era filho de escrava, matou o sobrinho, filho de Nzinga a Mbande, e, “com estranha impiedade, mediante água fervente ou ferros em brasa, como dizem outros, tirou às três irmãs a esperança de conceberem mais filhos (...). Nzinga a Mbande jurou então que nunca mais perdoaria ao seu irmão nem a quantos tomassem o seu partido. E foi a partir dessa altura que ela começou a votar um ódio visceral a todas as crianças de sexo masculino, pela lembrança de que o seu único filho fora tão cruelmente suprimido.
Evidentemente que o projecto de rechaçar os Portugueses era irrealista e depressa ocorreu a debandada do rei Tumundongo e de todas as suas tropas, perante um adversário muito mais bem armado e organizado, para além de dispor da ajuda de bandos de Mbangala. Num desses confrontos ficou mesmo presa a sua mulher principal (mais tarde, em 1629, seriam presas Cambo e Funji).

Nzinga a Mbande num momento de lazer

Ao longo de toda a sua vida, Nzinga sempre procurou protagonismo. Desde a infância que a sua preocupação constante foi sair da morosa rotina da corte real e variadíssimas vezes foi o que ela fez. Fê-lo em criança, num constante alarde de vivacidade física e mental, mostrando já a sua inteligência, fê-lo na adolescência em experiências sexuais “exóticas” que não constam em nenhum registo, mas foram propagadas pela tradição oral, fê-lo na idade adulta, ao tomar o poder, depois de ter saboreado o seus irresistíveis encantos, quando, na qualidade de embaixadora plenipotenciária do rei do Ndongo foi conduzida a Luanda em tipóia, à frente de uma elevada comitiva, fê-lo diante do governador português, atónito e quase incrédulo, perante o que se passava diante dos seus olhos, ao ver a embaixadora sentada no dorso de uma escrava a debitar argumentos que ele não sabia contrariar. Por isso Nzinga ficou na história como personagem ímpar.
Depois do baptismo de Nzinga a Mbande, havendo por parte do governador Corrêa de Souza alguma relutância em combater essa mulher, que, para todos os efeitos era cristã, e não obstante ele ter preferido cumprir a sua palavra, as pressões de Lisboa para se aumentar o mercado de escravos para o Brasil eram tão fortes que o governador não se sentiu apto a agir segundo a sua consciência. E atacou-a.
Mas, em Agosto de 1623 muda mais uma vez o governador, tendo assumido esse cargo o bispo Frei Simão Mascarenhas (João Corrêa de Souza, de 12 de Outubro de 1621 a Maio de1623, Pedro de Souza Coelho, de 2 de Maio de 1623 a Agosto do mesmo ano, e D. Fr. Simão Mascarenhas, de 10 de Agosto 1623 a 1624) , o que incitou a fresquíssima cidadã lusa dona Anna de Souza, aliás Nzinga a Mbande a insistir junto desse dignitário para que Portugal cumpra as suas promessas e devolva os homens do seu reino que tinham sido levados por traficantes de escravos. Ora, o tráfico de escravos era um grande negócio na altura e Portugal não estava interessado em abandonar essa fonte de rendimento. A Coroa portuguesa fez arrastar as negociações, fez que fazia e deixou de fazer, até que a certa altura, convencido de que com essa “Dona Jinga” não havia margem para dar confiança, decidiu aplicar a divisa, “para grandes males grandes remédios”, e, em 1625, o então governador Fernão de Souza (de 22 de Junho 1624 a 1630) decidiu acabar com a supremacia crescente de Anna de Sousa. Para isso, mandou pela força das armas colocar no trono do reino do Ndongo (sediado na região das Pedras de Mpungo Andongo) um parente de Nzinga, Ari Kilwanji,, que de facto não passava de um rei-fantoche, pronto a fazer o que os portugueses lhe ordenassem. O homem deixou-se baptizar, adoptou o nome cristão de Filipe, nome do rei de Espanha que então governava o reino lusitano, e comprometeu-se a prestar vassalagem ao colonizador, fornecendo 100 escravos por ano à Fazenda Real. Bento Banha Cardoso, capitão- mor do governador, foi encarregado de executar essa missão. Reinava então o espanhol Filipe III.
Com o evoluir dos acontecimentos claramente hostis à sua pessoa, Anna de Souza acabou por decidir “mudar de casaca e vestir a dela, obedecendo ao que a sua natureza lhe pedia. Renegou o baptismo e assumiu-se como Rainha Jinga., o que não incomodou sobremaneira os Portugueses, Estes, arvorando um “não-te-rales” arrogante, entenderam que seria fácil domesticar esta mulher, considerada como uma espécie de fenómeno folclórico profusamente exótico. Dizer que para ser respeitada se vestia de homem, com as habituais peles de animais, usava machado à cintura e manejava sem dificuldade o arco e a flecha, dá uma ideia da sua entrega ao exercício do poder, embora esse porte fosse catalogado de pueril pelos Portugueses. Além disso, o que já não é pouco, ela exigia ser considerada rei e não rainha, mantendo mesmo, à maneira de rei, o seu harém, composto, desculpem o pouco, de mais de cinquenta jovens que eram para todos os efeitos as “suas mulheres”, numa demonstração de vitalidade sexual que qualquer rei homem não poderia desdenhar. Algo que não lembraria ao Diabo, nem tão-pouco às mais belicosas feministas do século XX e XXI.

Depois da campanha vitoriosa de 1617-18 os Portugueses tinham definitivamente ocupado o território da margem direita (norte) do Kwanza, estendendo-se para leste até ao posto de Ambaca, e, muito mais tarde, por volta de 1671, até Pungo Andongo, depois da vitória final sobre o ngola a kiluange. Estas terras eram rodeadas, depois da partida do kulaxindo para o interior, por um anel de novos Estados Tumundongo fundados em meados do séc. XVII por titulares Lunda (makota) que chefiavam os bandos de Mbangala e tinham ficado em Angola. Os Portugueses empregavam estes Mbangala liderados pelos makota Lunda como mercenários de guerra e tratavam-nos tão generosamente quanto lhes era possível Este acordo predominou entre o Lucala, o Kwanza e o Kwango desde a década de 1620 até 1850. Entre os mais famosos que estiveram ao serviço dos Portugueses destacou-se o Nabuko ka Ndonga

Por volta de 1640, o reino da Matamba, centrado no rio Wamba, tinha-se tornado um dos mais poderosos Estados orientais dos Tumundongo, sob a chefia da rainha Nzinga, que lutava para restabelecer ali o título ngola a kiluange, após os Portugueses terem colocado fantoches no lugar dos reis originais do Ndongo. Entre 1641 e 1648 ela pôs-se ao lado dos Holandeses, enquanto Kabuku ka Ndonga continuava a lutar ao lado dos Portugueses.

Imagem: flickr.com

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