sábado, 23 de julho de 2011

AQUI ESCREVO EU. William Tonet. Por ocasião da visita de Merkel a Angola


As contradições ou a falta de dados no discurso de JES
Hoje, apenas me vou ater a uma indignação, partilhada por muitos autóctones ao ouvirem o discurso do Presidente da República de Angola, José Eduardo dos Santos, no dia 13 de Julho, por ocasião da recepção à chanceler alemã, Ângela Merkel. Disse ele, mais coisa menos coisa, que em 1975, em Angola, somente dois entre 100 angolanos/negros, sabiam ler e escrever. Fiquei surpreso com esta estatística. Não éramos muitos é verdade, mas não éramos assim tão poucos... Que o diga, o ministro da Administração do Território, membro do Bureau Político do MPLA, Bornito de Sousa, que tal como eu, estudamos na Cadeia de São Nicolau, enquanto autóctones negros, no período colonial, em salas repletas, exclusivamente, de indígenas.
Revirando o baú do tempo colonial, encontra-se um outro dado, que, aliás poderá ajudar a compreender, também, as contra-razões de JES, filho de um carpinteiro da EPAL de ter conseguido estudar no Liceu Salvador Correia, em Luanda, na altura, quase que reservado aos filhos da elite colonial branca.
Posto isto, atentemos ao texto abaixo, que faz parte do acervo das MEMÓRIAS DE ÁFRICA, de Jorge Eduardo da Costa Oliveira, do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento.

A Explosão do Ensino em Angola
Em 7 de Outubro de 1961 apresentara o general Deslandes ao Conselho Legislativo de Angola o seu plano de governo para 1962, documento ainda hoje com grande actualidade.
Dizia-se nesse Plano que, nos meios rurais, a escola seria levada à sanzala (povoações nativas rurais ou suburbanas), fazendo dela não exclusivamente um instrumento de simples aliteração das crianças, mas, ainda e principalmente, transformando-a num verdadeiro centro social integrado na vida da comunidade local. E acrescentava-se: "procurar-se-á vincular à escola e interessar nas actividades que dela hão-de irradiar os elementos de prestígio e de influência do meio".
Coube ao Dr. Amadeu Castilho Soares, responsável pela pasta da Educação, levar assim à prática o que preconizara no seu livro Política de Bem Estar Rural em Angola, editado pela Junta de Investigação do Ultramar.

Dr. Amadeu Castilho Soares
Docente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, empenhou-se entusiasticamente nesta tarefa verdadeiramente revolucionária em África que se traduziu na formação acelerada de centenas de monitores rurais de ensino e na criação de livros escolares adaptados à população africana, profusamente ilustrados com motivos da ambiência natural dos alunos. "Monitores" eram agentes nativos, com uma preparação que correspondia à 3.a ou 4.a Classes.
Até então, nas zonas urbanas e nos meios rurais, onde viviam populações com línguas e culturas diferentes da portuguesa, o ensino era ministrado pelas missões religiosas, tendo o "ensino dos indígenas" sido atribuído às missões católicas por força do acordo missionário com a Santa Sé de 1941. Esta acção, muito meritória, estava no entanto condicionada pela carência de meios humanos, materiais e financeiros.
Nos dois primeiros anos foram preparados e fixados em "aldeias do mato", dispersas pela imensidão do Território, mais de quinhentos monitores (frequentemente casais preparados em cursos intensivos de três meses em regime de internato. No primeiro curso aprendiam a ensinar a lª classe e, nos seguintes, depois de uma revisão da experiência anterior, a 2.a classe.
Inicialmente a Conferência Episcopal da Igreja Católica não reagiu bem a esta ideia, dirigindo mesmo uma carta de protesto ao Governo, mas, depois, compreendeu que se pretendia conjugar e reforçar a acção das missões a cujos professores o Estado passou a atribuir uma remuneração. Aliás, abolido o Estatuto do Indigenato, cessara o exclusivo da Igreja Católica (art.° 66.° do Estatuto Missionário). Mais tarde, no seu livro Angola: Cinco Séculos de Cristianismo, editado em Braga, o Arcebispo D. Manuel Nunes Gabriel viria a reconhecer o êxito da experiência pelo aumento, superior a 400%, dos alunos na primeira década da experiência.
Paralelamente criaram-se cursos de regentes escolares e professores primários, devendo aqueles ter o primeiro ciclo do nível secundário. A sua formação era feita em cursos de dois anos, tendo como objectivo prosseguir o ensino até à 4.a classe. O curso far-se-ia em missões católicas dispersas pelo Território. E, para a formação de professores primários, foram criadas as primeiras escolas de magistério primário.
O êxito alcançado veio a ser reconhecido pelo Ministério do Ultramar que, em 1964, pelo Dec. n.° 45908, aprovaria a Reforma do Ensino Primário Elementar nas Províncias Ultramarinas, o qual tomou por base o sistema adoptado em Angola, embora pondo o acento tónico nos regentes escolares.
Ainda no Governo do General Deslandes foram criados liceus em Luanda (o primeiro surgira em 1930), Lobito, Moçâmedes e Malanje, cidades que dispunham já de escolas técnicas. E novas escolas técnicas, também de nível secundário, surgiram em Cabinda, Uíge, Luso, Gabela e Luanda (duas). Foram igualmente criadas a Escola de Enfermagem de Luanda e o Instituto de Educação e Serviço Social Pio XII, para formação de técnicos de serviço social. E, para além da criação dos cursos superiores de engenharia, agronomia e medicina, iniciou-se a formação de professores de nível secundário.
A revolução operada no ensino primário teve repercussão internacional, sublinhando o prestigiado "The Economist" que, de 1961 a 1963, o número de africanos beneficiando de escolarização duplicara; e comentando que "não podendo os alunos ir à escola, a escola vai agora até eles". Do mesmo modo, o Centro de Estudos Estratégicos da Universidade de Georgetwon, de Washington, assinalava quer a africanização dos livros escolares quer o desejo, neles patente, de inculcar o espírito do multi-racialismo.
Esta revolução não morreu, felizmente, com a queda do Governo Deslandes em Setembro de 1962 e a consequente exoneração do Dr. Castilho Soares, o jovem titular da pasta da Educação (tinha então 31 anos). De facto, a equipa técnica que lançara o novo sistema de ensino – Inspectores Almeida Abrantes, Brito de Figueiredo e António Henriques Carneiro – deu-lhe plena continuidade e o novo titular da pasta da Educação, Dr. José Pinheiro da Silva, empossado em 26.3.64, abraçou-o inteiramente. Assim, a escola rural, para além da massificação do ensino, veio a desempenhar também um papel primordial no reordenamento das populações, contribuindo para a instalação de núcleos potenciadores do desenvolvimento agrícola e pecuário.

Estudantes de um liceu de Angola (foto livro)
O Dr. Pinheiro da Silva era mestiço, natural de Cabinda. Como sublinhou no seu discurso de posse, um brilhante improviso, começou a instrução primária quando os outros a acabavam, mas conseguiu, mesmo assim, concluir o ensino secundário aos 18 anos. E, aos 19, tendo ingressado na carreira administrativa, era administrador de posto, nunca se sentindo diminuído pela sua cor, gozando do respeito de nativos e europeus. Aos 30 anos era professor do ensino liceal em Portugal depois de se ter formado em Coimbra e ser eleito membro do Instituto de Coimbra. Agostinho Neto foi seu companheiro de quarto durante alguns meses, embora as divergências ideológicas os separassem. Deputado à Assembleia Nacional durante oito anos, voltou a Angola para leccionar na Universidade, em Sá da Bandeira e foi aí que o Governador-geral Silvério Marques o foi buscar.
O Dr. Pinheiro da Silva serviu Angola durante este Governo e, depois, até Janeiro de 1971, no Governo do Coronel Rebocho Vaz. Foram cerca de sete anos, durante os quais o seu gabinete estava sempre pejado de gente da terra solicitando o seu auxílio. A sua acção à frente da pasta da Educação ficou memorável, pela quantidade e qualidade do que realizou e pelo inexcedível entusiasmo com que o fez. Ficou a marcar indelevelmente toda uma nova geração de naturais de Angola. Um deles, ocupando hoje um dos lugares cimeiros na hierarquia político-militar, dizia-me, há poucos anos, que lhe devia a sua carreira.
No conjunto do que fez, desejaria destacar que o Dr. Pinheiro da Silva procurava identificar, nas sanzalas dos pontos mais recônditos de Angola, os alunos mais dotados e trazer depois essas crianças para lares do Estado, com bolsas de estudo, para que fizessem o ensino secundário e superior. Dei-lhe, na pasta do Planeamento e Finanças, um apoio incondicional nesse domínio, com prejuízo de outras prioridades, por me parecer que era essencial criar uma elite angolana intimamente ligada a Portugal. Aliás eu verificara em Portugal, por experiência própria, o quanto era difícil, ou quase impossível, a estudantes de aldeias situadas longe dos grandes centros urbanos e sem meios financeiros, frequentar, nessa época, cursos superiores. Dificuldade hoje atenuada mas que ainda permanece. Por isso, identificar as crianças mais capazes e conceder-lhes bolsas me parece dever constituir uma primeira prioridade.
Foi também durante este período governativo do Dr. Pinheiro da Silva que o ensino técnico médio (Institutos Comerciais, Industriais e Agrícola) e secundário (Escolas Comerciais e Industriais) e as Escolas de Artes e Ofícios conheceram uma grande difusão no território de Angola.
Ainda durante o tempo em que estive no Governo de Angola, seguiu-se ao Dr. Pinheiro da Silva o Dr. Stott Howorth, que muito se empenhou no apoio às Escolas de Artes e Ofícios (cerca de quarenta) e ao ensino agrícola, que contava apenas com a Escola de Regentes Agrícolas do Tchivinguiro, perto de Sá da Bandeira, e Escolas Práticas de Agricultura em Dalatando e na Matala.
A designação de "sanzala" aplica-se de um modo geral às povoações rurais e suburbanas da população africana. No entanto as povoações suburbanas de Luanda chamam-se "musseques" – designação que se tem vindo a generalizar a povoações suburbanas de outras cidades da zona quimbunda. A designação "musseque" significava, em princípio, terreno arenoso, mas agricultável, situado fora da orla marítima, em planície de altitude (vd. Oscar Ribas, Dicionário de regionalismos angolanos, Ed. Contemporânea). No sul de Angola, nas zonas de planície, o povoamento é disperso e é formado por eum-bos, espaços residenciais de cada família incluindo os currais, e onde se pratica a agricultura (vd. Os ambos de Angola antes da Independência, dissertação de doutoramento de Ramiro Ladeiro Monteiro, UTL, 1994).

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